Pesquisa:
Em 2001, realizamos entrevistas com professores e alunos de uma escola pública municipal da cidade de São Paulo. O objetivo era apreender as hipóteses desses sujeitos acerca das dificuldades de escolarização de alguns alunos. A escola havia nos contratado para realizar uma avaliação psicológica com cerca de sessenta crianças, de 4º, 5º e 6º anos do ensino fundamental, que não aprendiam a ler e a escrever os conteúdos vinculados a cada série. Os professores, as coordenadoras pedagógicas e a direção da escola
queriam que a Psicologia dissesse por que isso acontecia.
Aos professores foi feita a seguinte pergunta sobre cada aluno indicado:
“Quais são as suas hipóteses sobre a queixa apresentada?”
Eis algumas respostas:
Agressividade
Falta de interesse da família, que não incentiva e ajuda a criança na escola.
Situação familiar complicada: separação de pais, violência doméstica, abandono.
Idade mental inferior à cronológica.
Falta de motivação e interesse por parte da criança.
Problema neurológico.
Não se sentiam capazes de aprender.
Limítrofe.
Infantil, imaturo, “bobinho”.
Problema fonoaudiológico.
Aluno fraco, não acompanha a série.
Problema mental.
Falta de oralidade.
A criança não interage.
Não gosta de vir na escola.
Problema de audição.
Trauma.
Vida sofrida.
Deficiência mental.
Problema de visão.
Falta “pulso firme” por parte da família.
Bloqueio.
Não fixa a atenção.
Preguiça.
Cuida dos irmãos, não tem tempo de estudar em casa.
Carência econômica.
Carência afetiva.
Problema cerebral.
Excesso de faltas.
Aos alunos também foi perguntado sobre suas próprias hipóteses e história escolar. Muitas crianças reproduziram o discurso da família e da escola ao falarem sobre hereditariedade, separação dos pais, indisciplina ou problemas médicos; porém, denunciaram também a responsabilidade da escola por sua não-aprendizagem. Comum à maioria das respostas era a crença de que elas mesmas são responsáveis (ou até culpadas) pelo mau desempenho escolar:
Não aprendia antes porque ficava zoando na escola, ficava passeando no corredor enquanto a professora dava aula. Só ficava brincando. Este ano estou aprendendo porque a professora está ajudando. (E nos outros anos?) nos outros anos as professoras também ajudavam, mas eu não aprendia.
A professora (da série anterior) não dava atenção.
Não aprendia nada porque tomava muito café e água de coco. Não posso tomar café porque desaprendo.
Não aprendia porque as outras professoras não me chamavam pra ler. As outras professoras só mandavam fazer lição, mas não me ensinavam.
Porque fazia muita bagunça.
Não sei.
Não consigo decorar as letras. A psicóloga do serviço do meu pai disse que eu sou cinestésico ...(?) Ah, é a pessoa que não decora.
Antes não tinha força de vontade, agora eu tenho.
Ficava na rua de besteira, jogando futebol.
Repeti porque relaxei no Português.
Tinha medo de ler, porque lia errado; esse ano a professora ensina.
Eu faltava muito. Pegava o busão e ia passear por aí; agora parei de faltar, estou me esforçando, já aprendi a ler.
Eu fico com medo de errar o Português. Os outros ficavam rindo da minha cara.
Fico brincando e com preguiça.
Porque a professora tem que ajudar muitos alunos ao mesmo tempo; não dá pra ela ficar me ensinando a ler. Eu preciso de uma professora só pra mim.
(minha opinião: sistema educacional falho, por comportar em uma sala de aula mais alunos do que um professor pode dar atenção)
Antes a professora não dava a mínima bola pra mim.
Porque eu errava as continhas.
Porque antes tinha um moleque na sala que ficava brigando e colocava eu no meio, aí eu ia pra diretoria.
Porque as professoras não ensinavam; a desse ano que está me ensinando.
Antes eu brincava muito, conversava, não fazia lição.
Eu estou sem força de vontade.
Porque a outra professora não dava as fichinhas (de leitura) pra mim. A professora do ano passado não me ajudava ler.
Antes eu não me esforçava, agora eu tô se esforçando.
Eu acho que eu puxei meus irmãos, porque nenhum sabe ler e escrever direito, até minha mãe é analfabética.
Acho que é preguiça, porque eu tô fazendo e daí eu canso, não quero mais fazer. Eu acho também que é por causa do meu pai que é separado da minha mãe.
Não estudava, não ficava dentro da sala de aula. Antes eu não fazia lição de casa, agora que eu faço as que consigo e deixo pra corrigir em classe o que falta.
Muitas das respostas de alunos e professores mostram a influência de concepções da Psicologia no pensamento e na ação cotidiana escolar.
Qual a origem dessa visão medicalizante ou psicologizante do fracasso escolar?
Os alunos portadores de dificuldades de escolarização são freqüentemente encaminhados para diagnóstico psicológico. Professores, coordenadores e demais profissionais da Escola anseiam por um lugar aonde possam encaminhá-los e de onde recebam um laudo revelador das causas individuais dessas dificuldades. E os “exames psicológicos” quase sempre indicam a presença de deficiências ou distúrbios mentais nos alunos encaminhados, ou seja, são eles os portadores de desajustes, desequilíbrios, deficiências mentais, distúrbios emocionais ou neurológicos, agressividade, hiperatividade, apatia, trauma, disfunção cerebral mínima, complexos e tantos outros estigmas.
Assim, são os alunos individualmente que não têm capacidade de
aprender, são eles os grandes problemas da escola, reduzidos a meros objetos, independentes das dimensões sociais e políticas das instituições escolares, nas sociedades divididas em classes.
Os laudos falam, por meio de estereótipos, de crianças abstratas.
O avaliador geralmente desconsidera as condições institucionais em que são produzidas as dificuldades de aprendizagem, limitando-se ao uso de procedimentos técnicos de avaliação e de jargões recheados de preconceito acerca da pobreza (Moisés & Collares, 1997), não se dando conta de que um laudo pode marcar a vida de uma criança para sempre.
O perfil trazido por laudos reduzidos à descrição e/ou quantificação de habilidades mentais do examinando em nada auxiliam a prática pedagógica. Diante deles, os professores continuam sem saber o que fazer ou, pior, podem desistir de ensinar.
ANÁLISE DAS FALAS DOS PROFESSORES SOBRE O FRACASSO ESCOLAR
a) Causas biológicas
Idade mental inferior à cronológica. Problema neurológico. Limítrofe. Infantil, imaturo, “bobinho”. Problema fonoaudiológico. Problema mental. Problema de audição. Deficiência mental. Problema de visão. Problema cerebral. *Fala dos professores*
Nesse grupo de hipóteses, percebemos uma grande influência da Medicina e da lógica do “raciocínio clínico tradicional”: se determinado agente biológico causa determinada doença, ao detectarmos a doença, podemos inferir o seu agente causador.
Ao se utilizarem dessa lógica para entender os problemas de aprendizagem, os professores tiram da sua alçada a responsabilidade pelo processo de escolarização das crianças e conclamam o saber médico a intervir nas questões educacionais.
É assim que “termos como hiperativo, DCM, distúrbio, dislexia, hipercinético invadem o cotidiano da sala de aula, infiltram-se nas salas dos professores. A hipótese se transforma em verdade absoluta, incontestável. Em crença.” (Moisés & Collares, 1992, p. 40).
b) Causas familiares
Falta de interesse da família, que não incentiva e ajuda a criança na escola. Situação familiar complicada: separação de pais, violência doméstica, abandono. Falta de pulso firme por parte da família. Cuida dos irmãos, não tem tempo de estudar em casa. *Fala dos professores*
À família é atribuída outra parcela da culpa pelos problemas escolares. Os alunos não aprendem porque sua constituição familiar não é favorável ao bom desenvolvimento psíquico e ao sucesso escolar: os pais são
promíscuos, violentos, não valorizam a escola, não dão atenção, ficam muito tempo fora de casa.
A culpabilização da família expressa a visão preconceituosa que se tem dos pobres ao longo da história brasileira.
A pobreza, desde o início da revolução industrial, passou a ser entendida como inferioridade moral e física, natural de povos e indivíduos primitivos e transformou-se em instrumento de culpabilização das classes
populares por suas condições de vida.
Daí as expectativas dos educadores em relação a famílias vistas como rudes, desestruturadas, incapazes, perniciosas, muito distantes da concepção burguesa de família sadia: que os pais paguem a APM7
em dia, compareçam às reuniões, ajudem os filhos nas lições de casa, atendam prontamente aos chamados dos professores, participem das festas e eventos escolares,eduquem adequadamente os filhos, mantenham-nos limpos e comportados.
Guiados por um ideal de família,(minha opinião: não existe família perfeita, porque a escola quer alunos perfeitos? uma família que não está nos "padrões" nunca irá significar que não se preocupa com seus filhos, ou que são relaxados, a escola não busca compreender os vários fatores que envolvem a criança) os professores deixam de conhecer e relacionar-se com pais. Ao invés de tornar a comunidade sua aliada, a escola acaba por distanciar-se cada vez mais de sua clientela. A relação família-escola
torna-se tensa e sofrida: os pais sentem-se humilhados por cobranças agressivas; os professores sentem-se desvalorizados e solitários com o afastamento dos pais.
c)Causas culturais
Falta de oralidade. Carência econômica. Carência afetiva. Falta de
motivação e interesse por parte da criança. *Fala dos professores*
Essas falas são expressões quase literais dos aportes da teoria da carência cultural à explicação do fracasso escolar. Comum a essa versão é o pressuposto da existência de um desenvolvimento cognitivo ótimo num ambiente familiar igualmente ótimo, carregado de uma visão etnocêntrica de cultura (Patto, 1999), ao tomar valores, hábitos, atitudes e normas de outros segmentos sociais como os únicos verdadeiros e capazes de promover saúde mental.
d) Causas emocionais
Trauma. Vida sofrida. Bloqueio. Agressividade. *Fala dos professores*
A crença de que dificuldades de aprendizagem são decorrentes de problemas emocionais é comum entre os educadores. Numa apropriação equivocada da psicanálise, a partir da matriz de algumas teorias psicobiológicas da mente, acredita-se que o emocional precede e age sobre o cognitivo, crença que advêm de concepções teóricas que dividem o ser humano em metades: afetiva e cognitiva ou emocional e racional.
Situações realmente dramáticas vividas pelas crianças, como morte de um ente querido, testemunho de cenas violentas, abandono familiar, são tomadas por psicólogos e educadores como impeditivas da aprendizagem e como causas do fracasso escolar.
Isso significa que os professores precisam investir nesses alunos “marcados por problemas emocionais” e não abandoná-los sob a justificativa de que o sofrimento impede a aprendizagem escolar. Não
estamos, com isso, querendo dizer que os professores se tornem psicanalistas ou terapeutas em sala de aula - essa não é sua função. Cabe a eles voltar o seu fazer pedagógico para todas as crianças em idade escolar, acolhê-las em sua diversidade, sabendo que aprender é mais do que assimilar conteúdos.
*
Comum a todas essas hipóteses é o foco no aluno: ora é o seu aparato biológico, ora a sua família incapaz, ora suas aptidões insuficientes ou distúrbios psíquicos são produtores do fracasso.
Como vimos, os alunos reproduzem essas crenças que naturalizam o fracasso escolar e os responsabilizam.
(minha opinião: nenhum professor quis se responsabilizar - ou responsabilizar o sistema educacional- pelo fracasso escolar, porém é visível na fala dos alunos.)
Ao apropriar-se do discurso preconceituoso acerca da pobreza e lhe conferir uma roupagem científica, a Psicologia tornou-o discurso competente, entendido como fala dos socialmente autorizados a dizer algo sobre o outro, porque, veladamente, supõe-se que esse outro é incompetente para fazê-lo. Em outras palavras, os psicólogos, apoiados em teorias produzidas nos lugares competentes para produzir conhecimento, estão autorizados a falar sobre famílias, alunos e professores, desqualificando-os e silenciando a fala destes personagens que se defrontam nos espaços escolares.
Por trás da primazia do discurso competente, que permeia todas as esferas da vida social, está “um fantástico projeto de dominação e de intimidação social” (Chaui, 2001, p. 13), pois aquele que não se enquadra naquilo que o especialista propõe corre o risco de ver a si mesmo como incompetente, anormal.
(minha opinião: sem contar que esses rótulos postos pelos professores e laudos psicológicos podem gerar tristeza no individuo, e preoconceito/bullying por parte de seus colegas e/ou professores, por isso a importância de considerar cada individuo e suas relações sociais.)
É urgente a busca de outras formas de compreensão teórica das dificuldades de escolarização que caminhem num sentido oposto ao da psicologização ou medicalização da educação.
As teorias de Vygotsky, Luria e Leontiev apontam um outro caminho. Estes autores partem da teoria marxista para a construção de uma nova Psicologia baseada em uma metodologia científica com embasamento na história. Uma das marcas mais fundamentais da teoria de Marx na Psicologia de Vygotsky é o método dialético nos fenômenos psicológicos. Segundo Shuare (1990), “a Psicologia, em vista da complexidade de seu objeto, requer, em particular, a aplicação criadora do método dialético à investigação
e explicação dos fenômenos que estuda” (p. 18). Os fenômenos psicológicos só podem ser compreendidos se estudados em sua materialidade e movimento.
A partir das leis da dialética, Vygostky propõe alguns princípios necessários à investigação das funções psicológicas superiores, princípios estes que são fundamentais ao psicólogo interessado em compreender a
produção dos fenômenos escolares.
Em primeiro lugar, analisar processos e não objetos. Os processos psicológicos, em virtude de sua complexidade, sofrem constantes mudanças. Cabe ao pesquisador investigar e compreender como determinado fenômeno desenvolveu-se na história do indivíduo. Em relação à queixa escolar, cabe ao psicólogo investigar a história de sua produção.
Em segundo lugar, priorizar a explicação à descrição. Ao invés de descrever um fenômeno, como as ciências positivistas o fazem, a Psicologia Histórico-cultural procura compreendê-lo em sua essência, em sua totalidade, ou seja, para que possamos compreender a produção do fracasso escolar não basta dizer o que o aluno não aprende, o que ele não faz, não basta conhecer a aparência do fenômeno.
Por último, é preciso investigar os “comportamentos fossilizados”, ou seja, automatizados ou mecanizados,
que, no decorrer da vida, perderam de vista a sua origem e limitaram-se a uma aparência externa que nada diz sobre a concretude do objeto de estudo. Para que possamos compreender esses comportamentos, é necessário pesquisar como eles foram construídos, ou seja, resgatar a sua história.
Segundo Shuare (1990), um dos conceitos que organiza e estrutura a obra de Vygotsky é a historicidade, o caráter histórico do desenvolvimento humano. Esse autor introduz o tempo na Psicologia, ou melhor, introduz a psiquê no tempo. O psiquismo só pode ser compreendido historicamente, portanto, é imprescindível compreender o desenvolvimento da sociedade, como os homens produziram e produzem sua existência e, dessa maneira, suas formas de pensar, agir e emocionar-se. Assim, os fenômenos psíquicos
são de origem histórico-social: “a história do psiquismo humano é a história
social de sua constituição.” (Shuare, 1990, p. 61).
Fonte: Flávia da Silva Ferreira Asbahr e Juliana Silva Lopes
Artigo: "A culpa é sua"
Psicologia USP- 2006- São Paulo
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